Por Fabrício Caxito
Estamos acostumados a pensar no nosso planeta como uma bola de gude azul manchada por nuvens brancas flutuando no espaço, como nas imagens fantásticas da era da exploração espacial. Mas a Terra nem sempre teve esse aspecto que reconhecemos como tão amigável. Em seus 4,5 bilhões de anos de idade, nosso planeta já mudou de cara várias vezes.
Vale a pena colocarmos esse número em perspectiva. Uma das ferramentas visuais mais utilizadas neste sentido é o chamado calendário cósmico, popularizado pelo cientista nova-iorquino Carl Sagan, que comprime toda a história do Universo no espaço de um ano, com o Big Bang acontecendo à meia noite do dia primeiro de janeiro. Neste calendário, a Terra, junto com o sistema solar, só surge no dia 09 de setembro.

Um extraterrestre que avistasse o planeta até meados de outubro encontraria uma visão bem diferente. Ele provavelmente veria um mundo coberto por nuvens alaranjadas de metano geradas pela atividade vulcânica intensa em um planeta muito mais quente, cobrindo oceanos esverdeados devido à grande concentração de ferro dissolvido. Em um dos melhores exemplos de interação entre a vida e o planeta, o surgimento e a proliferação das cianobactérias e o produto colateral de sua fotossíntese, o oxigênio, limpou os oceanos ao reagir com os metais solúveis resultando em compostos insolúveis que desceram para o fundo do mar gerando os depósitos de ferro e manganês explorados atualmente, e reagiu com o metano e outros elementos mudando para sempre a composição química e a cara da nossa atmosfera.
O Sol, nossa fonte de calor e energia, também evoluiu com o tempo: estima-se que ele só tinha cerca de 70% da sua força atual no começo. Com um Sol tão fraco, todos os cálculos indicam que a Terra deveria ter sido completamente congelada durante grande parte da sua história. Porém, o registro geológico indica que quase sempre provavelmente houve água líquida livre na superfície do planeta. Como isto é possível? A resposta está novamente no metano, um excelente gás de efeito estufa que manteve a Terra aquecida em seus primórdios, mas que foi prontamente destruído pelo oxigênio. O Grande Evento de Oxigenação, como é chamado o momento em que a produção de oxigênio pelas cianobactérias gerou um excedente capaz de enriquecer a atmosfera nesse gás, acabou por mergulhar a Terra em seu primeiro episódio de glaciação global, em um belíssimo exemplo de como organismos tão pequenos como cianobactérias podem regular o clima de um planeta inteiro – e mudar sua cara novamente, para uma “bola de neve” global. Felizmente, todo o delicado sistema natural acaba por se autorregular: a glaciação global não impediu os vulcões de continuarem a expelir gás carbônico e outros gases causadores de efeito estufa. Foi só uma questão de tempo até que estes gases acumulassem novamente a ponto de aumentar a temperatura global, derretendo as capas de gelo e reiniciando o ciclo.
A fotossíntese permitiu que as cianobactérias reinassem absolutas por bastante tempo sobre outros tipos de microorganismos que não possuíam proteção contra o venenoso oxigênio, um elemento extremamente reativo. Porém, a vida no planeta continuou dominada por organismos simples, em sua maioria unicelulares, até por volta do dia 14 de dezembro, há cerca de 600 milhões de anos atrás. Por que esta demora na aparição dos nossos próprios ramos da árvore da vida?
A atmosfera e os oceanos não atingiram sua concentração atual de oxigênio após o Grande Evento de Oxigenação. As estimativas mostram que possivelmente este gás permaneceu em cerca de 1% sua concentração atual na atmosfera durante toda a meia idade da Terra, o Éon Proterozoico, quando os oceanos foram dominados por outra composição química, rica em enxofre, gerando uma cor púrpura escura, devido aos pigmentos presentes nas bactérias que utilizam este elemento para sobreviver.
Como sair de um mundo púrpura com odor de ovo podre gerado pelo ácido sulfídrico do metabolismo das bactérias amantes do enxofre para o mundo que conhecemos? A resposta está no resfriamento contínuo do planeta, que como vimos, era bem mais quente em seus primórdios. A tectônica de placas esteve ativa possivelmente desde o Arqueano, mas o manto era ainda muito quente para permitir que grandes placas afundassem nas zonas de subducção sem que elas perdessem a coerência e se derretessem nas primeiras dezenas de quilômetros de profundidade. Ao final do Éon Proterozoico, porém, em meados de dezembro, o manto já havia resfriado o suficiente para que as placas conseguissem afundar até mais de cem quilômetros sem perder a coerência em zonas de colisão de placas. Uma das consequências é que o reajuste isostático – o mesmo efeito que faz com que a maior parte de um iceberg fique por baixo da água – criou cadeias de montanhas muito mais altas e longas do que aquelas que as precederam no tempo geológico.
Quanto mais alta uma cadeia de montanhas, mais rapidamente suas rochas são consumidas pelos efeitos do intemperismo. A grande quantidade de detritos gerada pelo desmonte de uma cadeia de montanhas causa o soterramento do carbono gerado pela biomassa marinha, não permitindo que este carbono reaja com o oxigênio para formar novo gás carbônico. O resultado é um novo aumento nos níveis de oxigênio, e este, além de reagir com o enxofre dos oceanos produzindo sulfatos, bem menos tóxicos para a vida em geral, engatilhou também a proliferação de formas de vida com alto gasto energético, que precisam deste gás em abundância para seu metabolismo.
São desta época os primeiros fósseis que indicam o surgimento de inovações biológicas como conchas e organismos capazes de se mover intensamente. Algumas destas conchas apresentam pequenos furos que deixam claro a sua função evolutiva: a proteção contra predadores. Estava iniciada a corrida de desenvolvimento pontuado que nos próximos quinze dias do calendário cósmico levaria a proliferação das formas mais complexas e diferentes de metazoários, os animais, dos quais fazemos parte. Somos descendentes diretos das montanhas e dos mares.
A Terra já foi uma bola de fogo incandescente no berço, um mundo de oceanos esverdeados e nuvens tóxicas alaranjadas, um mundo com oceanos púrpuras com cheiro de ovo podre, uma bola de neve por diversas vezes, até chegar à bola de gude azul que conhecemos hoje. Quem pintou todas estas cores e cenários foi a vida que habita em sua superfície. E, enquanto fazemos a contagem regressiva para os dez segundos antes do réveillon cósmico, uma outra espécie vem causando efeitos em todas as esferas terrestres em velocidades muito mais rápidas e assustadoras do que todas as discutidas anteriormente. Desde a revolução industrial, o ser humano vem adicionando carbono que estava guardado na biomassa soterrada pelos processos naturais à atmosfera, em taxas 31 mil por cento mais rápidas do que na última extinção em massa. Os efeitos catastróficos que mudanças bruscas no ciclo do carbono e outros elementos causaram na vida são visíveis no registro das rochas, mesmo em taxas dezenas de milhares de vezes mais lentas que as atuais. Cabe a nós enxergar os avisos e compreender que a vida – inclusive a vida humana – é intimamente ligada às rochas, à água e ao ar do nosso planeta e que mudanças em uma esfera causam invariavelmente mudanças em todas as outras esferas interligadas.
Fabrício Caxito é coordenador do Projeto MOBILE, filósofo e professor de Geologia na UFMG.
Didático e muito bem ilustrado, Caxito. Parabéns!
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